terça-feira, 13 de novembro de 2007

Lembranças Musicadas de Uma Praia Rurbana


Achei curioso o facto do Baluka, no Kriolidadi da última edição do Jornal A Semana (imagem ao lado), ter aberto o seu artigo acerca do CD Lonji com uma referência a Língua Preto - cuja letra é da minha autoria, com alguns retoques do Tcheka, contrariamente ao que rezam o CD promocional e alguns artigos de jornal – como sendo uma música que lhe faz recuar ao seu tempo de infância em Assomada. A dada altura, Baluka escreve: “Durante toda a sua meninez, Tcheka viveu longe dos centros urbanos do seu próprio país, Cabo Verde, que nem sequer existiam na realidade.”.

A parte que eu destaquei nessa frase é muito interessante, pois praticamente responde à seguinte questão: como poderia alguém como eu, que viveu toda a sua infância e adolescência numa zona suburbana da Praia (Terra Branca, no caso) pudesse ter a legitimidade de fazer alguém viajar, por meio de uma letra de música, a vivências rurais do interior da Ilha de Santiago?

Sem entrar em muitos detalhes, o processo do povoamento de zonas como Terra Branca Baixo ou Tira Chapéu, para não citar outras, está intimamente ligado, sobretudo, ao êxodo rural e à imigração de gente de outras ilhas. Consequentemente, acabou por se verificar, em certa medida, uma reprodução das relações sociais do campo traduzida em coisas que hoje fazem parte do nosso imaginário, como por exemplo, as cabras e porcos criados nos terraços, que me inspiraram, aliás, a fazer uma música chamada Karru Sekretariadu, em alusão a toda aquela correria desesperada para pôr dentro de casa os animais soltos, antes que fossem apanhados pelo carro do Secretariado Administrativo da Praia (correspondente à Câmara Municipal nos dias de hoje), o que era, de resto, uma tentativa clara de romper com hábitos e costumes que não se coadunavam com a vida no meio urbano.

Outro aspecto marcante daquela vivência eram as relações de vizinhança, do Djunta mon, enfim, do chamado Capital Social Positivo. Lembro-me, por exemplo, da festa de Betom que, de tempos em tempos, juntava amigos, vizinhos, familiares para a colocação de cobertura da casa com massa de brita, areia e cimento, e na qual não faltava os indispensáveis feijão pedra e grogu. Como devem calcular, acabei inevitavelmente por fazer uma música a respeito de título Festa Betom.

Enfim, isto tudo para dizer que eu não precisava ir ao interior da ilha de Santiago para que pudesse estar legitimado ou “autorizado” a reproduzir algo do imaginário colectivo como a estória das fiticeras. Isto fazia parte do quotidiano do meu mundo suburbano, peri-urbano ou rurbano! Reconheço, no entanto, que eu não teria a mesma legitimidade em retratar vivências que envolvem “poial”, “cutelo” ou trabalho da terra (“monda”, “korta”,...), por uma razão muito simples: são elementos ligados ao meio rural enquanto espaço físico.

Por outras palavras, , nós que crescemos na Praia suburbana dos anos 80 não estamos necessariamente condenados a bater perna até ao interior para fazer rakodja de modo a criar música terra terra. É só irmos à memória (re)buscar vivências daqueles tempos e recuperar muita coisa interessante à espera da sua vez de sair cá para fora e fazer muita gente reviver o seu passado e suas raízes, seja do meio rural seja do meio suburbano.

Bem, e agora para finalizar, aproveito a ocasião para colocar na integra a letra da Música Língua Preto, pois o Tcheka abdicou de partes da letra na versão que adaptou para o CD, para que possamos fazer juntos essa viagem à estória sobre Nha Bedja Fiticera:

Língua Preto
(Djoy Amado)

(estória da mulher preocupada em proteger o seu filho, desde a gestação à maioridade, das garras da sua vizinha alegadamente feiticeira)

Lingua preto,
Rabo kumpridu ki ta cendi
Konchedu tambe pa boka fédi
Ta bira gatu pretu di madrugada

Fladu fla
M’ê kumi Pedrinho di Nha Amélia
Ê pôl ku korpu só kocerinha
Ê n-gabal kabelu ti npintxu sai



Ontonti ê pidi-m águ
n-da’l y n-borka’l kaneka,
ê fika ta tuntunhi
ê kaba pa pidi pa n-dexa’l bai

Nha fidju ê ka ta kumi
Nha fidju ê ka ta nguli
Dja n-toma pruvidência,
n-ka ta nsoda nau:



fumador d’arruda tres bes pa simana
ádju prindadu tras di porta
baboza na lata la kintal
sal spadjadu riba kaza

n-deta kuel séti dia kantu ki ê nasci
n-pôl guarda maradu na cintura
n-ta salta’l tres bez di vez em kuandu
n-po’l ta prendi fazi fisga kanhota

5 comentários:

Anónimo disse...

Djoy ... TERRA BRANCA não nem peri ou sub- urbana ... terra branca mais do que urbana é cidadina

Djoy Amado disse...

Sim, por acaso, el ê. Aliás, la komessa mutu cedu kel processu di contrução de blocos de moradia y di planificação urbana di raiz. Di qualquer forma,pelo menos nos anos 80, ruralidadi era visível la y na munti otus zonas.

Anónimo disse...

Djoy ka tem mal nenhum ser di cidade e com muito orgulho!

Cesária Verde disse...

oi, desculpa ,a letra di feiticeira nao é original do tcheka?

Cesária Verde disse...

oi, desculpa ,a letra di feiticeira nao é original do tcheka?